quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Da Natureza de uma Lágrima

Um pequenino anjo sentou-se sob uma pequena nuvem esfumaçante, toda como algodão, para descansar suas brancas asas de pluma onde o céu era azul e límpido, parecendo o pano de fundo de um teatro gigantesco e circular.
Ao se ajeitar calmamente, o anjo apoiou a cabeça em uma das mãos e o braço desta em seu joelho automaticamente, transformando, assim, a nuvem num pequeno trono áureo. Logo começou a contemplar o mundo abaixo dos pés com seu jocoso olhar de gavião, que logo se admiraram com o visto: Pessoas indo e vindo freneticamente nas ruas, o vento espalhando suavemente a sujeira jogada ao chão, os arranha-céus se erguendo imponentes sob os pequenos seres, mas sem sequer arranhar os ares (não são tão grandes daquele ponto de vista). Tudo caminhava naturalmente para um apanhado de vidas desconexas e emaranhadas que se assemelhavam com os respingos de dois rios se chocando: A vida e a morte.
O pequenino soprava suas mechas de cabelo dourado com muita tranqüilidade quando percebeu uma senil alma se aproximar lânguida. Flutuando entre o azul com seu manto em tom alva colada à sua essência, sua presença facilmente se tornou chamativa, sem com isso ter intenção alguma. Meditativo, logo perguntou:
– O quê o menino tanto olha?
– A vida – Respondeu o anjo atento ao que fazia.
– Muito entretida, não? – Como no começa, num tom singelo e franco, logo continuou a alma do velho – Claro, vista aqui de cima. Lá existe muita confusão, pois as pessoas são mesquinhas.
– Como assim? – Indagou o anjo num salto do entretido à atenção – Explique-se melhor.
– Bem, o homem de lá só pensa nele, e tem medo disso. Vive com regras e itinerários que o completo. Pra dizer a verdade... – Num repente, parou , olhou fixamente a Terra e começou a sussurrar como que perplexo – Na verdade... O homem se impõe, hã, nesta situação... Ele não julga e nem questiona... Seus atos se efetuam... como dizer, num lampejo... Isso mesmo! – Agora retornou em tom solene – Sua cabeça é tão complexa quanto o mundo! Num sabe ele o que ocorre em seu cérebro ao escolher fritas em vês de X-Burguer, dá pra acreditar? – Terminou com uma leve palmada no ombro do anjo, igual a um amigo de longa data.
Sem ter se mexido uma única vez, o anjo ouviu tudo bem atento, postada até a mente. As idéias percorreram a própria alma como no minúsculo mundo abaixo. Com o tapa, exclamou decidido:
– Gostaria de estar lá!
– Por quê? Daqui já não é suficiente o panorama? – Refletiu bondosamente o idoso.
– Gostaria de ser um homem, como você! – Num pestanejar, se ergueu como um trovão.
– Mas pra quê? Você é divino! Nasceu com uma pureza translúcida. Sabe que todo indulgente te inveja, seja lá como for! – O velho, indiferente a tudo, dirigiu essas palavras com um tom tão claro que todas as marcas da idade sumiram de seu semblante.
– Sei que tudo isto é meu inato, mas não compreendo o mal. – Gesticulou em dúvida, até juntando as sobrancelhas – Já me disseram, já ouvi e vi. Sei tudo isso apenas como um dicionário, tudo não passando de conjecturas!
– Mas isso é para o seu bem! – Disse o senil perdendo a calma, tentando imaginar onde o diálogo terminaria.
– Como posso saber? Você não é como eu! Não pode saber como sou! Imagina-me perante o que você é! E como me conheço? Já se perguntou? Nem eu sei! Só me vejo com os meus olhos! Com uma palavra posso me condenar ou me redimir! Tudo depende de mim! É fácil, mas não é! – Apesar da ordem das palavras, o anjo se expressa com calma, sem perceber o peso dessas.
– Um filho, isso não é certo, pensar assim...
– Se não é certo, é errado, e se é errado é mal! Mas não é mal, pois não sou mal! Então não é errado. A não ser que errar seja do bem?
– Mas os casos não...
– Não me julgue com a sua lei! Como disse, tua mente é um emaranhado de caminhos que não vê. Minha natureza é outra! Os valores para eu não podem ser vistos apenas para meu próprio bem e estima como os homens fazem. Para mim, o certo é o certo e o errado errado e ponto final.
Silêncio. Tudo o que os separavam era o silêncio. O ambiente continuava inabalável e não interferiu em nada no ocorrido. Silêncio. A conversa foi pessoal demais para ambos. O anjo conseguiu o que queria: Falecer a dúvida. A alma senil se tornou penosa perante o sentimento de inferioridade e desleixo. Silêncio. O anjo raciocinou que sua dúvida não tinha resposta para seus próprios argumentos, pois não tendo da maldade não teria como dizê-la em seu próprio âmago. Mesmo de bom tino, tencionou a própria dúvida como coreto para a auto-compreensão. Nada de errado em querer crescer. O ocorrido se tornou apenas num fator anulador. Silêncio. O homem foi pego numa masmorra. Viu seu “eu” num espelho sem distorção, para além de todas as fachadas minuciosas. A nossa “verdade” dos fatos é mais complacente que a do próximo. A sua derrocada foi se ver como o que odiava quando vivo, já que para ele era maior irresponsabilidade viver sem consciência dos fatos. Tudo isso o levou a odiar-se por viver em pura mentira.
Silêncio.
Finalmente o anjo deu as costas à alma desolada, da qual uma lágrima escorria pelo rosto seco. Quando ia levantar vôo, virou apenas o rosto e disse com altruísmo:
– Não chore! Está aqui porque merece.
Dito isso, voou para além do horizonte azulado, leve e calmo como uma andorinha. O senhor, como que soldado na nuvem, fixou olhar no celestial. O viu completo, o viu como um pássaro, o viu como um ponto... Enfim, não o viu mais. Levando uma mão a fronte para enxugar a única lágrima que suavizara o desespero, disse em surdina:
– E como saberei por que estou aqui? Como poderei saber?
Abaixo, a cidade caminhava normalmente para um apanhado de vidas desconexas e emaranhadas...

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